Dos lugares, nos extremos da História: a representação dos espaços na obra “O outro pé da sereia” de Mia Couto



       Eusébio Djú
    Orientadora: Izabel Cristina dos Santos Teixeira
Resumo
O presente artigo analisa transformações e reorganizações dos espaços físicos (geográficos), ao longo do tempo, proporcionadas pelas relações sociais aí presentes, na obra “O outro pé da Sereia” (COUTO, 2006). A narrativa, desenvolvida em XIX capítulos, enfoca contextos históricos distintos: século XVI e século XXI. No século XVI, dá-se a viagem do Provincial dos Jesuítas, da Índia Portuguesa (cidade de Goa) para o império Monomotapa (Moçambique). Tempos depois (século XXI), partindo dos EUA para este último lugar, dirige-se o casal Benjamin Southman (afrodescendente) e Rosie Southman (brasileira), a fim de que o marido resgate sua pregressa identidade (raízes africanas). Ainda século XXI, em Moçambique, o casal Mwadia Malunga e Zero Madzero (pastor de ovelhas da região) encontram uma imagem de Nossa Senhora, no rio Mussenguezi, na pequena cidade de nome Antigamente (lugar escolhido para lhes servir de moradia, logo após casamento) e, para sua preservação, transportaram-na para um outro lugar, a cidade Vila Longe. O estudo em apreço terá com suporte teórico os autores Milton Santos (2012), Yi Fu Tuan (2012) e Félix Guattari (1990).  


Palavras-chave: Espaços físicos. História. Transformações. Moçambique.



                                                                                                                       
Introdução
A análise da representação dos espaços físicos, na obra “O outro pé da Sereia”, de Mia Couto (2006), é vista a partir de evidências, problematizações e transformações, reorganizações, ao longo do tempo, especificamente, os séculos XVI e XXI. Ambos carregam as modificações dos lugares, com destaque para a forma como os personagens interagem com os mesmos.  Para sua interpretação, foram utilizados como base teórica  os ensaios “A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e emoção” (SANTOS, 2012), que trata da diferenciação entre paisagem e o espaço. Para Santos (2012, p.103), a paisagem é o conjunto de forma que, num dado momento, exprimem heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. Ou seja: o espaço são essas formas mais a vida que as anima. Além desse estudo, pautado na obra “Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente” (TUAN, 2012), também se propõe ao entendimento das afinidades e a permanência (ou não) dos implicados, à medida que as transformações locais se verificam. Também contribui para este estudo a obra “As três ecologias” (GUATTARI, 1990) a qual analisa registros ecológicos que interferem na percepção subjetiva dos espaços, enfocando “os perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural”, (GUATTARI, 1990, p. 7).
            Com isso, este trabalho se inicia pela descrição dos espaços, a partir de seus contextos históricos (temporais) distintos, após o quê se seguirá o debate teórico em torno deles.

Peculiaridades da construção espacial: o contexto do século XVI

O século XVI traz a cidade de Goa, à época, Índia Portuguesa, como o estado em que estava presente a estrutura eclesiástica, representada pelo provincial dos Jesuítas, Dom Gonçalo da Silveira.  Por ela, havia o Rio Mandovi, por onde se dá a circulação das pessoas de bens e tinha elo com o rio Lodoso, compondo o itinerário da comitiva de Dom Gonçalo da Silveira para a África, até alcançar o Império Monomotapa, comandado pelo Imperador Nogomo Mupunzangatu, autoridade máxima local.
O império Monomotapa se estendia até o Reino Prestes João. Esse império era conhecido por Portugal com nome da “mãe do ouro”, (COUTO, 2006, p. 248).
Os rios anteriormente citados desaguavam no oceano Índico, itinerário dos viajantes e colonizadores europeus, que também promoviam tráficos de escravos em África. 
Para o trajeto entre Goa e África, o provincial dos jesuítas, D. Gonçalo da Silveira, contava com ajuda de um escravo Nimi Nsundi. De origem africana (Reino do Congo), fora enviado para Lisboa “em troca de mercadorias” (uma espingarda, cem espoletas, cinquenta balas de chumbo, um barril de pólvora e uma pipa de cachaça) que o Rei Afonso I, aliás, Mbemba Nzinga, mandara vir de Portugal.
Em Goa, Nsundi, em vista da sua viagem ao continente africano, entra em contato com a escrava indiana, Dia Kumari, a quem entrega areia, em sinal da referência ao lugar onde a indiana possivelmente tinha nascido: “–Sabe de onde é essa areia?, Perguntou o mainato. –De onde é? –Do lugar onde você nasceu. Apanhei essa areia na praia de Goa. Fique com isso...” (COUTO, 2006, p. 108).
Dom Gonçalo da Silveira, nessa viagem de Goa para a África, acompanhado pelo jovem sacerdote, Padre Manuel Antunes, estreante nas andanças marítimas iria realizar a primeira incursão católica na corte do império de Monomotapa. De alcunha “Homem santo” (COUTO, 2006, p.51), o provincial dos jesuítas desconhecia a África, já que o que sabia vinha de seu pai, Dom Luís da Silveira, que estivera em expedição guerreira, nas terras africanas de Azamor, em 1513[1] (COUTO, 2006, p. 252). Para o padre, a África era um lugar de “desfiles de monstros” (COUTO, 2006, p. 310), lugar de trevas, males, pecados. Com esses pensamentos, o “santo padre” pisa o chão africano, depois de cinco semanas de viagem, em fevereiro de 1560 (COUTO, 2006). Trazendo consigo a “estátua de Nossa Senhora benzida pelo papa” (COUTO, 2006, p.51), em sua comitiva, também seguiam marinheiros, funcionários do Reino, deportados e escravos. A peregrinação do provincial dos jesuítas obedece à promessa que ele fez a Portugal de converter ao cristianismo aos próprios africanos a quem considerava “cafres e mouros” (COUTO, 2006, p.259).
Na sua incursão às terras africanas, o santo padre confronta com os próprios portugueses que se já encontravam no império Monomotapa e que foram motivos da sua raiva, até o ponto de proferir algumas palavras contra a atitude desses portugueses: “o maior inimigo já não eram os gentios. Nem eram os mouros. A mais grave ameaça resultava da conduta indecorosa dos portugueses em terras tropicais” (COUTO, 2006, p.310). Em meio a essas contradições comportamentais, ele, Dom Gonçalo da Silveira, chega ao império de Monomotapa, no dia 1 de Janeiro de 1561. “Nesse mesmo dia, o português Antônio Caiado foi enviado pelo Muene* para dar boas-vindas ao jesuíta”, (COUTO, 2006, p. 261). Depois do seu encontro com o jovem imperador Nogomo Mupunzangatu, o provincial, perseverante na sua missão, absteve-se de todos os presentes doados pelo imperador Nogomo, esperando a realização da sua promessa missionária.
Chegando à hora certa para materialização da promessa do Santo padre, Dom Gonçalo da Silveira, à frente do imperador com entusiasmo do seu recebimento na corte do império Monomotapa, diz o seguinte: “O imperador Nogomo está a dar sinais de se abrir à nossa fé”, (COUTO, 2006, p. 262). O provincial ajoelhado à frente da imagem da Nossa Senhora autorizaria que a imagem da Santa fosse levada junto ao Nogomo Mupunzangatu, imperador, para pernoitar com ele. “Na manhã seguinte, o imperador Nogomo Mupunzangatu era baptizado com o nome de D. Sebastião e a sua mãe com o nome de D. Maria. Assim chamavam o rei e a rainha de Portugal”. (COUTO, 2006, p. 263).
O jovem padre, Manuel Antunes, replicava ao provincial sobre a missão deles. Para ele essa missão era difícil, já que desconheciam do império Monomotapa, entretanto, como era a missão confiada a eles, por isso, tinham que ir para corresponder com a sua fé católica. Enfim, o Manuel Antunes como sempre, se encarregou de descrever viagem deles de Goa, Índia Portuguesa, ao império Monomotapa reclamando dos seus destinos.

Peculiaridades da construção espacial: o contexto do século XXI

Nos século XXI, um dos espaços referidos é Moçambique, onde agentes policiais se mantêm vigilantes por causa de algumas suspeitas das entidades desconhecidas, por questões de fronteira. Assim, um deles falou numa comunicação interna, urgente:

Um aparelho de espionagem usado pelos nossos serviços secretos desapareceu esta noite, algures no Norte de Moçambique... o que a suspeita de que as forças terroristas estão atuando nessa região de África. A aeronave cumpria uma missão de reconhecimento militar... com base de apoio...no oceano Índico. (COUTO, 2006, p.16)


 É nesse espaço, em Moçambique, que o casal afro-americano (Benjamin Southman e Rosie Southman) se estabelece, a fim de que Benjamin Southman resgate suas raízes africanas.

O avião fazia-se à pista e o americano agitava-se na cadeira: aquele era o momento há muito esperado. África, a sua África, ia ganhando desenho, um contorno próximo e real. Por fim, ele chegava à terra de onde há séculos os seus antepassados tinham sido arrancados pela violência da escravatura. Era preciso esse regresso para que Benjamin Southman, historiador afro-americano, se reconstituísse, ele que se sentia como rio a quem houvessem arrancado a outra margem, (COUTO, 2006, p.137).


Assim, uma vez estando em Moçambique, seu propósito era visitar os lugares a cidade Antigamente e Vila Longe (em Moçambique). Essa pretensão do casal americano provinha do bom acolhimento dos nativos que viram nele, o casal, um sinal de irmandade de sangue.


- Casuarino abriu os braços, com a imponência de um Cristo, e a sua voz sobressaiu no ruidoso ambiente do aeroporto: - Benjamin, my brother! Welcome to Mother África! Antes de se recolher no abraço do moçambicano, Benjamin tombou inesperadamente de joelhos. O anfitrião correu a erguê-lo do chão. Teria sido um baque, o americano tombara sucumbido pela emoção? (COUTO, 2006, p.139).


 Entretanto, no decorrer das suas andanças nesses lugares africanos, o casal se sente desolado pela destruição do ambiente, sobretudo, casas, causada por pessoas que aí iam residir. Isso despertava-lhe curiosidade pelo ocorrido, a ponto de sair em busca de respostas, inquirindo a circunstantes locais:

Á entrada de Vila Longe, os americanos estranhavam o estado de destruição dos edifícios, como que mastigados por uma apocalíptica voragem. – Tudo isto foi destruído pela guerra?, inquiriu Rosie. Foi a guerra, sim, mas foram também outras guerras, disse Mwadia, (COUTO, 2006, p.143).

Em cada lugar, o casal notava as diferenças de um lugar a outro, da cidade de Antigamente à Vila Longe, tais como: casas e outros edifícios em ruinas (COUTO, 2006, p.143).
Ali (na atualidade, Moçambique), se localiza a cidade de Antigamente, tida como bom lugar para se viver pelo casal Zero Madzero e a sua esposa Mwadia Malunga, que se estabeleceram como os primeiros habitantes, tornando-os pastores de ovelhas, burros e cabritos e frequentam, tanto os cultos cristãos quanto os não-cristãos locais. Assim, também reconhecido como “postori”, Madzero é um crente da Igreja Apostólica criada por John Marange em 1930.

Madzero era um “postori”. Noutras palavras, ele era um crente da Igreja Apostólica, criada por John Marange em 1930. Não seria exatamente um caso de fé, pois o juízo de Zero não aguentava nem metade de crença. Ele aderira aos “vapostori” apenas porque, para ele, o nome soava como um aportuguesamento da palavra pastores, e não de apóstolos. A seita seria onde os pastores pobres como ele se reuniriam e evocariam o dia em que o planeta inteiro se converteria numa reverdejante paisagem, (COUTO, 2006, p.16).


 Ali, se percebem: os rios Zambeze, Mussenguezi e Nkazi, que, nas cheias, alegram os mais velhos, por fornecerem sustento aos habitantes. Transformados em espaços de navegações, dão acesso ao oceano Índico.
Tal como os rios, a floresta também tem destaque. A ela é atribuída as características de um meio onde os nativos e o casal realizam suas atividades rituais/culturais, sendo, assim, espaço de comunicação com os ancestrais e com as demais entidades vivas, entre os africanos.
Nesse meio, Zero Madzero também presta cultos aos seus ancestrais, fazendo uma mescla das práticas religiosas, da religião tradicional e da religião cristã, situação que deixa a sua esposa, Mwadia Malunga, em questionamento sobre o valor dessas práticas culturais, tão distintas. Assim, tão logo ele entra  em uma floresta,  dirige algumas preces de permissão, possivelmente em sinal de veneração por seus antepassados:

“Peço-vos, meus antepassados, que me concedam autorização para entrar nesta floresta. Peço mais ainda que autorizem Mwadia, minha esposa, a me acompanhar. Sendo Mulher ela está interdita de entrar no bosque. Mas o caso é demasiado imperativo. Agora, irei dormir na margem da floresta, deitado sobre o último caminha. Amanhã regressarei para confirmar se esta farinha foi deixada intacta como um sinal da vossa permissão”, (COUTO, 2006, P. 34).

Um outro espaço de destaque é a cidade de Vila Longe, ligada `a  Antigamente, por meio do rio de Mussenguezi, por onde se desloca  Mwadia Malunga, saindo de uma para outra, servindo também como ponto do encontro de questões comerciais.
Vila Longe, dadas suas peculiaridades de calmaria e dimensão, abriga a construção da Igreja para a conservação da estátua da Nossa Senhora da Graça. “A Vila era de bom tamanho, suficiente para merecer igreja e praça”, (COUTO, 2006, p.68)
Mwadia, nativa da Vila Longe, não perde da memória as características dessa cidade, e sente “reminiscências” da casa paterna. Lembra-se do seu primeiro espaço de habitação e decide voltar para encontrar com seus parentes em Vila Longe, levando consigo a estátua da Nossa Senhora da Graça. “O regresso de Mwadia a vila longe era sonho e pesadelo”, (COUTO, 2006 p. 39).

O dia seguinte foi o da partida de Mwadia. Sempre calado, o marido ajudou-a a aparelhar o burro. Madzero também não disse palavra à despedida. Adeuses são assunto de mulheres. De costas viradas, a esposa agachou-se e com o indicador desenhou na areia uma estrela. Era a sua maneira de escrever a promessa: regressaria antes que o desenho ficasse desfeito pelo vento (COUTO, 2006, p.45).

Vila Longe é, por assim dizer, o primeiro lugar de vida da Mwadia Malunga, o seu primeiro lar de contato foi motivo do seu regresso para lá. Ainda se lembra das pessoas que marcam sua vida da infância, carimbando uma tinta indelével na sua memória.
Para Mwadia, a casa paterna é lugar de segurança, de proteção, de equilíbrio social, de vida de luxo, de conservação dos bens materiais, de refúgio, de habitação, da confidência a deixar sempre uma marca em sua memória. “A casa da infância é como um rosto da mãe: contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o tempo” (COUTO, 2006, p.68).
  
À medida que se aproximava da sua vila, Mwadia ansiava recuperar o sentido de pertença a um lugar. Ela estava, a um tempo, receosa e ansiosa. As vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a perdida familiaridade. Nem ela adivinhava quanto os rostos de vila estavam vazios e inexpressivos, como se ela, mesmo regressando, se mantivesse ausente (COUTO, 2006, p. 68).

Por meio do Rio Mussenguezi, Mwadia Malunga, saindo da cidade Antigamente, carrega consigo mesmo a estátua da Nossa Senhora da Graça, que avistara no rio referido, dando a entender que se trata da mesma estátua trazida pelo provincial dos jesuítas na Índia portuguesa, quando Dom Gonçalo da Silveira, e padre Manuel Antunes empreenderam uma viagem ao império Monomotapa no século XVI, em fevereiro de 1560.

Debate: a elaboração dos espaços no tempo

Tendo sido a Cidade de Goa, Índia Portuguesa cristianizada pelos portugueses no século XVI, é possível inferir que a o trabalho missionário esteve a serviço da Colonização portuguesa. Em vista dos fatos ocorridos – a travessia dos rios Mandovi e Lodoso feita pelos padres com a finalidade converter o rei, soberano do império Monomotapa e ter a posse dos bens locais - isso leva a crer que o processo de catequese tinha uma dupla finalidade: trazer a religião de Portugal e servir de pretexto para as conquistas locais, com intuito de expandir o império português. Assim sendo, nessa época, chegam ao território os padres jesuítas, aparentemente propagadores da “missão cristã” no Mundo. Na verdade, o papel desempenhado por eles visava a implantar o modo civilizatório português, com o objetivo de fortalecer o poder do rei de Portugal, pela ampliação de seus territórios.
Além disso, percebe-se que a congregação jesuítica, instalada em Goa, composta em maior número pelos padres portugueses, facilitou o empreendimento dos desejos do rei. Dessa forma, pode-se afirmar que uma das estratégias para expansão do império português foi o emprego da religião. Nesse caso, um dos exemplos refere-se ao batismo do imperador Nogomo Mupunzangatu que comandava o império Monomotapa, para os colonizadores, uma “mãe de ouro”.  (COUTO, 2006, p. 51-62).
Com a conquista, se pretendia ali, no império Monomotapa, introduzir os modos de vida dos portugueses, a fim de poder dominar todo território, começando pelo imperador, até a última categoria do povo do império. Tal prática corrobora com o pensamento de Leff (2008, p. 387) a respeito dos modos de exploração e dos usos, por exemplo, na Venezuela. Para o autor, da mesma forma, um povo de uma cultura (colonizador) põe a explorar os recursos do outro povo (colonizado), desrespeitando o meio ambiente dessa determinada cultura. Assim, de acordo com o que foi dito, os portugueses, achando-se superiores, impuseram suas formas de civilizações a outros povos, a quem consideravam inferiores.  
Tomando a palavra “cafres”, na sua empregabilidade pelos portugueses, no sentido derivado dos árabes, é possível perceber que os portugueses acreditavam que os africanos fossem infiéis (COUTO, 2006, p. 62). Aparentemente, a primeira incursão cultural perpetrada pelos portugueses incidiu na crença local: os habitantes locais praticavam o culto aos ancestrais. Assim, os portugueses, impondo-se, desconsideraram as práticas culturais tradicionais que foram bases das crenças africanas. 
Especificamente falando sobre as crenças africanas nos ancestrais, de acordo com Capone (2011, p. 190), a visão dos portugueses se mostrava distorcida. Por exemplo, a esse respeito, segundo a autora citada,

Ao lado do orisha “dono da cabeça”, encontra-se atualmente também o “orisha guardião”: um ancestral divinizado que acompanha seu descendente e orienta suas ações. Esse orisha é portador de um tipo particular de ashé, o “ashé ancestral”. Não é necessário se iniciar no culto desses “orisha guardiões”, porque eles são herdados no seio da família biológica, e sua energia é transmitida pelos laços genealógicos. (CAPONE, 2011, p. 190).

Assim, o homem africano, nas suas ações, é orientado pelos seus ancestrais que concedem a ele o poder para o enfrentamento de qualquer obstáculo. As suas vivências boas ou ruins não o competem, mas aos seus ancestrais que lutam tudo por ele e para que consiga brilhar em todo canto aonde quer que esteja.
          Mais ainda: sustentado pelas reflexões de Capone (2011, p. 190), pode-se dizer que as energias possuídas pelo africano são transmitidas através de laços de árvores genealógicas, razão pela qual não se deve perder as estruturas mentais já tidas pelos seus ancestrais, visto que, ao nascer, estas já vêm consigo. Essa cosmogonia não foi compreendida pelos missionários portugueses que trataram de aniquilá-la por meio do Batismo.
          Realizando a travessia pelos rios Mandovi e Lodoso, prioritariamente rotas comerciais, de Goa (Índia) à África, passando pelo Oceano Índico, os jesuítas (Dom Gonçalo da Silva) batizam o Imperador Monomotapa (Nogomo Mupunzangatu). Ou seja, os rios citados também foram o meio a servir de rota, aparentemente, para as realizações da primeira incursão cristã portuguesa na África.  
O tráfego da crença – valores religiosos alterando o comportamentos locais...nova manifestação de fé – valores cristãos.
          Porém, aí estando, os jesuítas pensavam encontrar alguns modos civilizatórios já implantados pelos portugueses, chegados antes dele. Tal não se dá: a despeito de toda ação portuguesa, muitos deles se adaptaram aos costumes africanos, conforme palavras do próprio provincial dos jesuítas, padre Gonçalo da Silveira: “O maior inimigo já eram os gentios. Nem eram os mouros. A mais grave ameaça resultava da conduta indecorosa dos portugueses em terras tropicais. Aqueles que deviam ser a prova viva da superioridade moral dos cristãos, acabavam deslustrando a tão árdua obra missionária”. (COUTO, 2006, p.310). Nesse caso, aparentemente, o fator de conversão preponderante foi à simbologia da fé portuguesa - Silveira levava consigo a estátua da Nossa Senhora benzida pelo papa, marco de um símbolo maior desta peregrinação (COUTO, 2006, p. 51). Com a imagem da santa, o provincial dos Jesuítas percebeu que a melhor forma para catequizar os africanos era utilizar-se da imagem em solo africano, afinando-se com a pretensão do rei de Portugal pela conquista do império Monomotapa.
A interferência na composição social do espaço a partir da crença religiosa, que também segregadora, pois envolvia relações de poder, a ponto de ser assassinado.
Em relação a isso, se percebe o que Leff (2008, p. 389) diria que “[...] as relações sociedade-natureza são atinentes a uma história ambiental, enquanto tratam de fenômenos complexos que ocorrem no tempo, num espaço não exclusivamente natural, mas humano”. É importante ressaltar que o meio ambiente o que Leff se fala é aquele em que se desenrolam as ações humanas, que tendem sempre a transformar os espaços ambientais. O meio físico seja qual for só pode adquirir outro status se houver as ocorrências de atividades humanas.
Num outro tempo, o século XXI, em Moçambique (não mais o reino de Monomotapa), as ocorrências das ações humanas se dão  em Antigamente. Aí,  tem-se a floresta que passa a ser o espaço de preservação das práticas culturais africanas. Nela, o personagem Zero Madzero vai trazer o “novo”, a ideia da modernidade – abertura às novas culturas diferentes de sua- e que na sua atitude fazia perceber a sua veneração aos espaços dos seus ancestrais, mesmo assim, ele realiza uma mescla das práticas religiosas, da religião tradicional e da religião cristã. Esse nível de abertura aos “novos tempos” não é compreendida por sua esposa, Mwadia Malunga. Ela assim representa possivelmente a tradição da sua cultura que, para ela, não era compatível com a aparente fusão das práticas religiosas que seu esposo, Zero Madzero, fazia.
O que se pode dizer sobre esses novos tempos, no espaço floresta, o lugar em que estão em convivência tantas espécies de plantas ?  De acordo com Tuan (2012), a relação do humano com a floresta pode ser exemplificada pela  forma como os pigmeus (do Congo), reagem nesse lugar:
A intimidade com a floresta é expressada de muitas maneiras . As relações sexuais, por exemplo, têm lugar em uma clareira, em lugar  de uma choça. Um pigmeu pode dançar sozinho na floresta – com a floresta. O recém-nascido é banhado com água misturada com sumo de cipó. O cipó é amarrada na cintura e argolas decoradas com pedacinhos de madeira usadas nos punhos. Na época da puberdade, a menina renova o seu contato com os cipós e folhas da floresta; as usa como decoração, vestuário e leito. Durante uma crise, como o fracasso de uma caçada doença ou morte, os homens se reúnem para cantar canções que despertarão o espírito benigno da floresta. A trombeta molimo, um instrumento ritual, é levada a diferentes partes da floresta, um jovem repete nela as canções que os homens cantam, (TUAN, 2012 p. 118).

Nesse caso, constata-se algo aparente nessa narrativa em cena, a floresta é vista na tradição africana como um lugar pouco frequentado e só é visitado por algumas ocasiões de grande importância, caso exemplo, o estabelecimento de um contato direto com as entidades vivas, os ancestrais.
Zero Madzero, ao entrar logo numa floresta, como de costume na sua tradição, dirigia algumas preces de permissão que seria uma veneração aos seus antepassados. “Peço-vos, meus antepassados, que me concedam autorização para entrar nesta floresta”, (COUTO, 2006, P. 34).
De matriz africana, Zero Madzero estabelece a sua relação com os seus ancestrais, pois, a sua prática esclarece que as cerimônias tradicionais são tão sagradas quanto outras cerimônias de cunho religioso não africano. Zero Madzero respeita todos os espaços em que os seus ancestrais consagraram mediante os seus costumes tradicionais, mas não abdica dos “novos tempos”, ou seja, também respeita e pratica outras manifestações religiosas. Desse modo que o Guattari (1990, p. 25), chamaria atenção que a natureza não pode ser separada da cultura, já que todas elas andam juntas. Não pode falar da natureza do espaço se beliscar a cultura amontoada nesse espaço.

 Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar “transversamente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais. (“GUATTARI, 1990, p.25)”.

Assim sendo, conjugando essa atitude de personagem, anteriormente referida, com o que Santos (2012, p.104) afirma a ação do ser humano se desencadeia na Natureza, por isso o espaço dispõe de valor em função da sociedade que desencadeia certa ação sobre ele. Não obstante, o espaço na medida em que vai ser marcado com ocorrência de ações tende-se a ser múltiplo conforme a atuação dos seus implicados.

 O espaço, uno e múltiplo, por suas vezes parcelado, e através do seu uso, é um conjunto de mercadores, cujo valor individual é função do valor que a sociedade, em um dado momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, a cada fração da paisagem. O espaço é a sociedade, e a sociedade também o é. No entanto, entre espaço e paisagem o acordo não é total, e a busca desse acordo é permanente; essa busca nunca chega um fim. (SANTOS, 2012, p.104).

Neste sentido, Zero Madzero mantém essa ligação cosmogônica entre Natureza – floresta – que estabelecia seu contato com ancestrais, preservando sua identidade cultural, sem conflitos com a convivência com outros valores religiosos (cristãos)
Por outro lado, para Tuan (2012, p. 341) “Seres humanos persistentemente têm procurado um meio ambiente ideal. Como ele se apresenta, variando de uma cultura para outra, em essência, parece acarretar duas imagens antípodas: o jardim da inocência e o como”. O que seria dizer que os humanos realizam as ações sem noções dos seus prejuízos, por isso, se constatam que alguns espaços acabam adquirindo algumas características que dantes não possuíam. Essas ocorrências de ações não põem o fim na vida humana, por isso, se pode perceber que os seres vivos ao longo do tempo não se conformam com os espaços onde vivem consequência disso, enxergam-se nas deslocações constantes dos indivíduos à procura de lugar melhor para viver. Também, percebe-se em Couto ( 2006, p. 15-34), que os rios as  florestas formam uma ponte ( tomada no sentido de um elemento de ligação de duas partes) que facilitaram as tarefas dos personagens nos  momentos de suas viagens ao exterior do lugar de costume.Assim como pode perceber que nos séc. XVI o rio Mandovi foi a partir daí prosseguiu a comitiva do provincial  dos jesuítas, D. Gonçalo  da Silveira, em Goa, Índia Portuguesa, até ao império Monomotapa ( COUTO, 2006, p. 51). De mesmo aconteceu com o rio Zambeze que era um meio de circulações de pessoas de bens.
Assim, Como se pode constatar em Couto (2006, p.32), o Zero Madzero e a sua esposa chegaram a esse lugar que depois vieram a denominar de Antigamente, talvez, se estavam com a impressão de que é a partir daquele momento que o esse lugar apareceu, nem repensaram no que seria esse espaço antes de interferirem nele. Em suas vistas viram a beleza do lugar, aí, começaram a ter vontade de ficar morando nele, sendo nele os primeiros habitantes.
Juntando os tempos – século XVI e século XXI- Além disso, se compreende em Santos (2012, p 19) que o espaço como conjunto de fixos e fluxos possui os elementos fixados em cada lugar que permitem que as ações modifiquem próprio lugar e os elementos fluxos que recriam as condições ambientais e condições sociais e que redefinem cada lugar.
Zero Madzero é a metáfora dos “novos tempos” porque sabe lidar com os opostos, aqui representados pelos valores religiosos, desencadeando mecanismos possíveis que pudesse se apoiar para pensar no que seria o lugar. Nessa ordem de ideia, Santos (2012, p. 63) afirma que “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.





Referências bibliográficas
COUTO, Mia. O outro pé da sereia: (romance) / Mia Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CAPONE, Stefania. Os yoruba do Novo Mundo: religião, etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos/ Stefania Capone; [tradução de Márcia Atálla Pietroluongo]. – Rio de Janeiro: Pallas, 2011. 376p. : il.
GUATTARI. Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder/ Enrique Leff; tradução de Lúcia Matilde Enlice Orth. 6ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
SANTOS, Milton. A técnica do espaço: técnica e tempo, razão e emoção/ Milton Santos. 4ª Ed. 7. reimpor. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012, (coleção Milton Santos).
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Edule







[1] COUTO, Mia. O outro pé da sereia. (romance) Mia Couto. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 53. O orgulho vinha longe: o ajudante de meirinho não era um simples cafre. Tinha sido capturado no Reino do Congo e enviado para Lisboa em troca de mercadorias que o Rei Afonso I, aliás, Mbemba Nzinga, mandara vir de Portugal. Nsundi era um “trocado”, uma moeda de carne. O homem custava uma espingarda, cem espoletas, cinquenta barril de pipa de cachaça.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Autobiografia de Eusébio Djú

A PRIMEIRA CONVOCAÇÃO DA REUNIÃO PARA O ENGENDRAMENTO DO MOVIMENTO DOMINGOS SIMÕES PEREIRA PRESIDENTE DA REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU, AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DO DIA 24 DE NOVEMBRO DE 2019

SOBRE AS NUANÇAS DA EXPRESSÃO HUMANA: UMA REFLEXÃO ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA